Caminhar pelas ruas do Velho Continente é como entrar em um livro de História. A cada esquina nos deparamos com edifícios centenários que guardam segredos de muitas, e muitas, gerações. Boas e trágicas lembranças. Nesse sentido, Barcelona não deixa a desejar. O medieval Barri Gòtic, com vestígios dos tempos romanos, é um os lugares que mais aprecio no mundo. E, é exatamente nele que se encontra um local conhecido como “El Call”, o antigo bairro judeu de Barcelona.
É bem documentada a presença de judeus em Barcelona, desde meados dos anos 850. Já os primeiros vestígios históricos do bairro judeu datam do Século XI, quando documentos se referem a “ire ad callem judaicum”, ou seja, ao beco/ruela. No "Call" (em catalão), termo que vem da palavra hebraica "kahal" ou “Kehilla” ("comunidade" ou "congregação"), os judeus respondiam diretamente ao rei, ou ao prefeito real, e a organização interna ficava a cargo dos próprios judeus.
O El Call Major era cercado por duas muralhas e estava nos limites do antigo traçado romano. No seu interior havia 5 sinagogas, escolas, hospitais, casas e oficinas. Todavia, os judeus não viviam enclausurados no bairro judeu, ao contrário, a comunidade era muito bem integrada e tinha propriedades em Montjuïc (a montanha dos judeus) e na baixa Barcelona.
Em 1079, a população judaica era de cerca de setenta famílias, até que no Século XIV atingiu cerca de quatro mil pessoas. O crescimento do número de famílias e a chegada de judeus expulsos da França tornou necessária a criação de um novo bairro, o Call Menor.
Tudo corria bem até o Quarto Concílio de Latrão (1215), quando várias disposições foram adotadas contra os judeus. Desde então, ao sair do bairro, eles tinham que levar uma rodela costurada na roupa como forma de identificação. A epidemia conhecida como Peste Negra dá origem a calúnias, e passou a se espalhar a noticia de que os judeus eram os responsáveis por ela, já que haviam envenenado a água. Isso gerou uma onda de violência e no sábado, 17 de maio de 1348, o Call foi atacado e vários judeus foram mortos.
Em agosto de 1391, houve um terrível massacre do povo judeu. Muitos morreram, outros se converteram ao cristianismo e outros fugiram da cidade. Dessa data em diante, a vida pública judaica desapareceu de Barcelona. Apenas no Século XIX, eles começaram a retornar.
Visitando El Call
A área correspondente ao Call Menor, ao redor da Igreja de Sant Jaume, sofreu muitas modificações. Mas, a região correspondente ao Call Major é um passeio imperdível. O antigo bairro compreende as ruas: Sant Sever, Sant Honorat, Sant Domènec del call, Arc de Sant Ramon del call, Marlet e Banys nous.
Comece o seu tour pelas históricas ruelas na esquina das ruas Sant Domènec del Call, de la Fruita e Marlet. A rua Sant Domènec del Call (ou de Salomó ben Adret) era conhecida como a rua da sinagoga e do açougue. Seu atual nome faz referência ao ataque dos católicos em 1391, dia de Santo Domingo. Na rua del Call, pare diante das casas de número 5 e 7, para ver os restos da antiga muralha romana, que passava justamente por ali.
Siga até a Carrer de Marlet, uma das ruas mais conhecidas do bairro graças à placa de pedra embutida na parede da casa no número 1 onde se lê: “Fundação Piedosa de R. Samuel Ha-sardi. Sua luz ficará acesa para sempre ”. Trata-se de uma réplica da lápide judaica original, do século IX, em homenagem ao rabino da antiga comunidade.
No número 5, se localiza a Sinagoga Major de Barcelona, ou Shlomo Ben Adret, cuja fundação foi lançada pelos Romanos, e acredita-se datar do Século I-II. Já a sinagoga em si é do Século VI, sendo, junto com a sinagoga Ostia, de Roma, a mais antiga da Europa.
Shlomo Ben Adret foi o líder do judaísmo catalão durante o Século XIII. Além de rabino, ele era banqueiro de reis, como Jaime I.
Com a expulsão decretada pelos Reis Católicos, em 1492, os edifícios do bairro judeu foram convertidos: a Sinagoga Major virou uma tinturaria, e a Sinagoga Menor um convento trinitário do qual hoje só restam a igreja na Carrer de Ferran, a paróquia de Sant Jaume. Durante anos esse edifício foi utilizado para diversos fins até que, em 1987, o medievalista Jaume Riera e Sans deu os passos iniciais que permitiram prever a localização exata do que havia sido a Grande Sinagoga de Barcelona. A partir desse estudo, o Sr. Miguel Iaffa passou a investigar o exterior do edifício da Carrer de Marlet 5 e constatou que ele cumpria a exigência do “Tosefta”, ou seja, possuía duas janelas voltadas para o leste, para a cidade de Jerusalém. No final de 1995, o antigo proprietário colocou o imóvel à venda e o Sr. Miguel Iaffa o adquiriu a fim de restaurá-lo e trazer à luz seu passado histórico. Assim, em 2002, a Sinagoga Major foi aberta ao público.
Para visita-la, atravessamos uma portinhola e descemos um lance de escada até o nível da rua original das fundações romanas. Lá, no subsolo, no primeiro espaço visitado há restos da muralha romana de Barcelona. A segunda câmera é usada como sinagoga onde são realizados Bar Mitzvah, Bat Mitzvah e Huppá.
As paredes de origem romana são feitas com pedras procedentes de Cartago.
Aqui estão expostos vários artefatos judaicos que “contam” um pouco da historia e da cultura da antiga comunidade. A visita é guiada, em inglês ou hebraico, e por cerca de 15 minutos vários fatos relatados neste post nos são explicados.
Infelizmente, na época dos protestos anti-israelitas de 2008, um militante do grupo Movimento Social Republicano atacou a sinagoga e golpeou um integrante da Associació Call de Barcelona, que se encontrava no edifício.
Depois da visita, siga pela Carrer de l'Arc de Sant Ramon del Call e não deixe de olhar para as portas onde se pode ver os buracos onde os judeus pregavam a "mezuzá", um rolo de pergaminho com dois versos da Torá. No seu fim, está a moderna Placeta de Manuel Ribé. No prédio na esquina da Carrer de l’Arc de Sant Ramon del Call, que foi erguido no Século XVI e mostra vestígios anteriores dos Séculos XIII e XIV, se localiza o Centro de Interpretação do Call. Pertencente ao Museu de História de Barcelona, nele, através de diversos objetos, se pode aprender sobre a história da comunidade judaica de Barcelona e o seu importante legado. Um grande destaque é uma lápide, com inscrições em hebraico, que rememora os rituais de morte deste povo. Ela foi retirada do cemitério de Montjuïc, lugar onde os judeus eram enterrados. Quando o cemitério foi abandonado, em torno de 1492, algumas lápides foram retiradas e futuramente utilizadas na construção de edifícios do bairro Gótico.
Endereço: Carrer de Marlet, 5.
Horário de funcionamento: de abril a outubro - de segunda a sexta, das 10:30 às 18:30h; nos finais de semana, das 10:30 às 14:30h; de novembro a março - de segunda a sexta, das 11 às 18h; das 11 às 15h, nos finais de semana. O ingresso custa € 3.
Endereço: Placeta de Manuel Ribé s/n.
Horário de funcionamento: quarta-feira, das 11 às 14h; sábados e domingos, das 11 às 19h. Entrada: € 2.
Durante o passeio pela Barcelona judaica, há alguns ótimos lugares para comer e beber. Para provar doces conventuais, vá ao Café Caelum (Carrer de la Palla 8); para tomar um chá exótico, vá ao Salterio (C/ de Salomó ben Adret 4); para comer tostadas maravilhosas, vá a La Alcoba Azul - Tapas (C/ de Salomó ben Adret 14); para um brunch, vá a lindo Bistrot Levante (Placeta de Manuel Ribé, 1).
Abraços!!
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